Os Amores de Ares e Afrodite

padovanino
Vênus e Marte surpreendidos por Vulcano. Il Padovanino, 1631.

Na Odisseia, Afrodite é personagem de um episódio cantado por Demódoco, poeta da corte feácia, onde Odisseu chega após partir da ilha de Calipso e ser atingido, em uma jangada, por uma tempestade marinha. Nesse episódio, após ser informado por Hélios de que sua esposa o está traindo com Ares, Hefesto bola um ardil para capturá-los e pedir reparação por tamanha vergonha.

No contexto do poema, esse episódio é paradigmático, uma vez que, em Ítaca (terra natal de Odisseu), a esposa do herói, Penélope, está sendo assediada a dar o marido como morto e contrair novas núpcias e, sendo assim, o episódio serve de alerta ao marido ausente para tomar cuidado com a possibilidade de chegar em casa e encontrar sua esposa nos braços de outro, voluntariamente.

Essa questão permeia bastante o poema como um todo e é elaborada em outros momentos, como na catábase de Odisseu (representada no canto XI), quando o herói se encontra com o espírito de Agamêmnon e é alertado por ele acerca do risco de que sua mulher, mesmo sabendo da sua volta, esteja mancomunada com um amante a fim de matá-lo e assumir o trono.

Contudo, quanto ao que nos interessa, isto é, Afrodite, o episódio dos Amores de Ares e Afrodite é interessante por trazer a lume duas relações amorosas da deusa que são importantes na história de seu culto: o casamento com Hefesto e o “namoro” com Ares. Embora Afrodite seja majoritariamente relacionada a Hefesto na tradição textual que nos foi legada, a arqueologia nos fornece dados de que em Esparta, por exemplo, as representações da deusa fossem sempre relacionadas a Ares, nas quais ela figura portando armas, embora não em postura de combate ou similar. Nesse contexto, Afrodite recebe os epítetos de Aréia [1] (denotando sua qualidade bélica ou meramente sua relação amorosa com o deus) e Enóplia (a armada). Há outros mitos que a relacionam a outros personagens, como o herói troiano Anquises e o deus-herói Adônis, dos quais postarei conteúdo em outro momento.

Além disso, o episódio traz duas outras informações muito interessantes. A primeira delas é a segunda versão mais difundida do nascimento de Afrodite, documentada tanto na Ilíada e na Odisseia quanto adotada posteriormente por mitógrafos como (Pseudo) Apolodoro em sua Biblioteca Mitológica: nessa versão, Afrodite não é mais a deusa nascida do falo descepado de Urano jogado ao mar, mas sim filha de Zeus (cf. versos 308) e de Dione, uma deusa da qual temos pouca informação e cujo o nome indica um duplo feminino do próprio Zeus. Isso porque em grego um outro nome para Zeus é Día, do qual Dione seria a forma gramatical feminina.

A segunda informação, por fim, diz respeito a uma relação muito delicada de se tratar que é a existente entre Helena e Afrodite. No episódio em questão, Hefesto refere-se a sua esposa como “moça cara-de-cadela” (verso 319), característica marcante de Helena ao longo de toda Ilíada quando a heroína refere-se a si mesmo em contextos negativos da Guerra de Troia. A questão, contudo, não para aí: Helena, em relatos como o de Heródoto no segundo livro de suas Histórias, é vista como um duplo de Afrodite, cultuada também como deusa, não como heroína que a tradição nos legou: ele diz que no Egito, no distrito de Proteu, há um santuário dedicado à “Afrodite estrangeira”, que segundo o historiador é Helena, uma vez que, em lugar nenhum além deste, Afrodite é referida como estrangeira. Essa relação egípcia diz respeito ao mito (tratado, por exemplo, por Eurípides em sua tragédia Helena) segundo o qual Helena nunca chegou a Troia por ter sido retida no Egito por Proteu depois dele saber que Páris a havia raptado, e a guerra toda se deu em torno de um fantasma dela que todos julgaram ser a heroína em pessoa, embora os troianos jurassem não tê-la consigo, a fim de cumprir a promessa de Zeus à Gaia de aliviar o peso dos homens sobre a Terra.

Passemos, então, ao texto homérico. Cito aqui a tradução mais recente da Odisseia, publicada em 2014 pela extinta Cosac-Naify e feita por Christian Werner. Da Odisseia, contudo, abundam traduções, dentre as quais, as mais famosas são a de Carlos Alberto Nunes publicada pela Ediouro/Saraiva, a de Trajano Vieira publicada pela Editora 34 e a de Odorico Mendes, hoje em domínio público.

Nota: [1] Embora o Novo Acordo Ortográfico indique que não se acentuam palavras compostas pelo ditongo -ei- (como colmeia), optei por marcar a acentuação para que não se confunda o epíteto da deusa com o substantivo areia (da praia etc).

Os Amores de Ares e Afrodite (Od. VIII, 266-365)

Tradução: Christian Werner

Então aquele [Demódoco], dedilhando a lira, entoou belo prelúdio
acerca do amor entre Ares e Afrodite bela-grinalda,
como, na primeira vez, uniram-se na casa de Hefesto
às ocultas: presenteou à larga e aviltou cama e lençóis
[270] do senhor Hefesto. Presto veio-lhe um mensageiro,
Sol, que os percebera na união amorosa.
Hefesto, quando ouviu o discurso aflitivo,
foi à ferraria, ruminando males no fundo do juízo;
pôs sobre o cepo a grande bigorna e forjou laços
[275] inquebrantáveis, inafrouxáveis, para lá ficarem imóveis.
Mas após montar, zangado, o ardil para Ares,
foi ao quarto, onde ficava sua cama querida.
Em torno dos postes, jogou os laços abarcando todos os lados,
e muitos de cima caíam, pendendo da viga-mestra,
[280] leves teias de aranha que ninguém poderia ver,
nem os deuses ditosos: montara algo bem ardiloso.
Mas após estender todo o ardil pela cama,
simulou ir a Lemnor, cidade bem-construída,
entre todas, de longe sua terra mais cara.
[285] Cega vigia não mantinha Ares rédea-dourada,
quando viu Hefesto arte-famosa ir para longe;
dirigiu-se à casa do bem famoso Hefesto,
almejando amor com Citereia bela-grinalda.
Ela há pouco do pai muito possante, o filho de Crono,
[290] chegara e sentara-se; e ele entrou na casa,
deu-lhe forte aperto de mão, dirigiu-se-lhe e nomeou-a:
“Ali, querida, deitados na cama, deleitemo-nos;
Hefesto não está mais em casa, mas já
foi a Lemnos encontrar os cíntios língua-agreste”.
[295] Assim falou, e ela alegrou-se com a ideia de repousar.
Subiram no leito e deitaram-se; em volta, os laços
artificiosos de Hefesto muito-juízo irromperam,
e não se podia mexer membro algum nem o erguer.
Então perceberam que não havia como fugir.
[300] E achegou-se deles o bem famoso duas-curvas,
depois de meia-volta, antes de chegar em Lemnos,
pois Sol permanecia de vigia e avisara-llhe.
E foi a sua casa, agastado em seu coração.
Parado no pórtico, zanga selvagem o atingiu;
[305] deu berro aterrorizante e gritou a todos os deuses:
“Zeus pai e outros ditosos deuses sempre-vivos,
vinde cá para verdes feitos risíveis e intoleráveis,
como a mim, zambo, a filha de Zeus, Afrodite,
sempre desonra e ama Ares infernal,
[310] pois ele é belo e tem o pé perfeito, mas eu
nasci fraco. Para mim, nenhum outro é responsável,
exceto os dois pais, que não me deveriam ter gerado.
Mas vide onde os dois fazem amor deitados,
após subir em meu leito; atormento-me, vendo.
[315] Não espero que se deitem assim nem por pouco tempo,
embora bem enamorados: logos os dois quererão
estar dormindo. Mas o ardil, o laço os conterá
até que o pai devolva, na totalidade, as dádivas
que pus em suas mãos pela moça cara-de-cadela,
[320] já que sua filha é bela, mas não é pudica”.
Assim falou, e deuses reuniram-se na casa chão-brônzeo:
veio Posêidon sustém-a-terra, veio o supercorredor,
Hermes, e veio o senhor age-de-longe, Apolo.
Deusas mulheres, por pudor, ficaram todas em casa.
[325] Pararam no pórtico os deuses, oferentes de bens;
e riso inextinguível irrompeu entre os deuses ditosos
ao verem as artes de Hefesto muito-juízo.
E assim falavam, fitando quem estava ao lado:
“Ações vis não excelem; o lento alcança o rápido,
[330] assim como Hefesto, mesmo lento, agarrou Ares”.
Assim eles disso falavam entre si;
e a Hermes disse o filho de Zeus, o senhor Apolo:
“Hermes, filho de Zeus, condutor, doador de bens,
eis que gostarias, imobilizado por laços poderosos,
[335] de deitar na cama ao lado da dourada Afrodite?”.
A ele respondeu o condutor Argifonte:
“Tomara isso ocorresse, senhor Apolo alveja-de-longe.
Que três vezes mais laços, invencíveis, me detivessem,
e vós me observásseis, deuses e todas as deusas,
[340] mas eu deitaria junto à dourada Afrodite”.
Assim falou, e o riso irrompeu entre os deuses imortais.
Mas o riso não tomou Posêidon, e pedia, sem cessar,
a Hefesto obras-famosas que Ares liberasse;
e, falando, dirigiu-lhe palavras plumadas:
[345] “Liberte-o; e eu prometo que ele, como ordenas,
vai te pagar tudo que se deve entre deuses imortais”.
E a ele dirigiu-se o bem famoso duas-curvas:
“De mim, Posêidon sustém-a-terra, isso não peças:
reles é a garantia garantida em nome do reles.
[350] Como eu te prenderia entre os deuses imortais
se Ares partisse, após escapar do dever e do laço?”.
E a ele de novo dirigiu-se Posêidon treme-solo:
“Hefesto, se Ares, de fato, após escapar do dever,
partir em fuga, eu mesmo te pagarei isso”.
[355] E a ele então respondeu o bem famoso duas-curvas:
“Não é possível nem convém rejeitar tua palavra”.
Após falar assim, o ímpeto de Hefesto soltou o laço.
E quando os dois foram soltos do laço bem forte,
presto se foram: ele pôs-se em direção à Trácia,
[360] e ela alcançou o Chipre, Afrodite ama-sorriso,
rumo a Pafos, onde tinha santuário e altar fragrante.
Lá as Graças banharam-na e untaram com óleo
imortal, o que cobre os deuses sempre-vivos,
e vestiram-na com vestes desejáveis, assombro à visão.
[365] Isso o cantor bem famoso cantava; […]

Referência:

WERNER, C. Odisseia: Homero. São Paulo: Cosac Naify, 2014. pp.268-271

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