Hino a Afrodite, de Safo
Afrodite, no Hino a Afrodite de Safo, é invocada pelo eu-lírico (aqui nomeado de Safo, embora não se possa atribuir à poesia lírica grega o caráter intimista e biográfico que a tradição acabou impingindo à ela) para que a deusa não o arrebate com os sofrimentos do amor, mas sim que ela seja sua aliada em suas próprias contendas amorosas. Bastante descritivo, nele podemos ver Afrodite se abalando, em um momento anterior à enunciação do hino, do Olimpo para a terra a fim de atender ao pedido de Safo, que se mostra devota constante, uma vez que o episódio que narra refere-se a preces anteriores que teria feito à deusa.
Do ponto de vista do gênero, o corpus Sáfico é composto basicamente por poemas mélicos, isto é, um dos três grandes gêneros poéticos gregos que é o único passível de ser propriamente chamado de lírico por ser ele cujo acompanhamento musical é feito com a lira, diferentemente dos outros dois, isto é, a elegia e o jambo (ou iambo). Nesse corpus, o poema que hoje apresento para vocês se trata de um hino clético, isto é, um hino invocatório, no qual o enunciador pede pela presença e intervenção da divindade em um determinado assunto.
Do ponto de vista da caracterização de Afrodite e de seus domínios, esse poema constrói uma imagem que aproxima o amor da guerra. Nele, a deusa é convocada a libertar Safo de seus sofrimentos e requisitada como aliada “de lutas”. Além disso, ele também traz a lume alguns atributos de Afrodite: 1) ela detém um manto florido e furta-cor; 2) é filha de Zeus; 3) é a tecelã de ardis e, por fim, 4) é sorridente. Todos esses atributos são atestados na tradição poética supérstite, seja nos poemas homéricos, seja nos hesiódicos.
O primeiro atributo relaciona-se à tópica da toilet de Afrodite, cuja representação mostra a deusa sempre trajada em belas vestes e ornada com exuberantes adornos, além de relacionar-se também à própria associação entre Afrodite e fertilidade da terra, como quando, na Teogonia, diz-se como flores nasceram onde quer que ela pisasse. Do segundo atributo já falei no post anterior, de como há duas tradições a respeito de seu nascimento: ou do falo castrado de Urano e arremessado ao mar, ou gerada por Zeus e Dione. O terceiro atributo, embora já presente em outros textos aqui apresentado, diz respeito a uma série de narrativas que mostram o poder de manipulação que Afrodite detém, sendo capaz de causar toda uma guerra (como a de Troia) e mesmo de insuflar o desejo irrefreável por mortais nos deuses (como veremos no Hino Homérico V). O quarto e último atributo, por fim, diz respeito à etimologia do epiteto philommedea, que pode significar tanto amante de sorrisos, quanto nascida do falo; seja como for, a tópica do sorriso no contexto de Afrodite não é estranho já que Hesíodo mesmo atribui como honra dessa deusa “palavreado de meninas, sorrisos e farsas” (Theog. v.205).
Por fim, voltando à questão do tipo poético, isto é, o hino, podemos ter uma breve noção das partes que o compõe: a invocação da divindade por meio da sua nomeação e enunciação de seus epítetos e/ou atributos, o apelo à kháris da deusa (ou seja, à reciprocidade proveniente da relação constante entre devoto e divindade) e a nomeação do desejo.
As traduções que hoje apresento são a de J.A.A. Torrano, publicada em um pequeno livro chamado Sado de Lesbos – Três Poemas pela editora Ibis Libris em 2009 e a de Giuliana Ragusa, publicada tanto em seu Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo (Editora da Unicamp, 2005) quanto em seu Safo de Lesbos: Hino a Afrodite e outro poemas (Editora Hedra, 2011). Há outras traduções que circulam pela internet, feitas por colegas da área do Grego, como a que o Leonardo Antunes fez, musicou e disponibilizou no YouTube e que ponho ao fim do post; e tenho notícias de outras a serem publicadas em breve, se já não publicadas.
Hino a Afrodite, de Safo
Tradução: J.A.A. Torrano
Afrodite imortal de faiscante trono
filha de Zeus tecelã de enganos peço-te:
a mim nem mágoa nem náusea domine
Senhora o ânimo
Mas aqui vem – se já uma vez
a minha voz ouvindo-a de longe
escutaste e do pai deixando a casa
áurea vieste
atrelado o carro. Belos te levavam
ágeis pássaros acima da terra negra
contínuas asas vibrando vindos do céu
através do ar,
e logo chegaram. Tu ó Venturosa
sorrindo no rosto imortal indagas
o que de novo sofri, a que de novo
te evoco,
o que mais desejo de ânimo louco
que aconteça. “Quem de novo convencerei
a acolher teu amor?” “Quem, Safo, te faz sofrer?”
“Se bem agora fuja, logo te perseguirá,
se bem teus dons recuse, virá te dar,
se bem não ame, logo amará – ainda que
ela não queira.”
Vem junto a mim ainda agora, desfaz
o áspero pensar, perfaz quanto meu ânimo
anseia ver perfeito. E tu mesma – sê
minha aliada.
Hino a Afrodite, de Safo
Tradução: Giuliana Ragusa
De flóreo manto furta-cor, ó imortal Afrodite,
filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te:
não me domes com angústias e náuseas,
veneranda, o coração,
mas para cá vem, se já outrora –
a minha voz ouvindo de longe – me
atendeste, e de teu pai deixando a casa
áurea a carruagem
atrelando vieste. E belos te conduziram
velozes pardais em torno da terra negra –
rápidas asas turbilhonando céu abaixo e
pelo meio do éter.
De pronto chegaram. E tu, ó venturosa,
sorrindo em tua imortal face,
indagaste por que de novo sofro e por que
de novo te invoco,
e o que mais quero que me aconteça em meu
desvairado coração: “Quem de novo devo persuadir
(?) ao teu amor? Quem, ó
Safo, te maltrata?
Pois se ela foge, logo perseguirá;
e se presentes não aceita, em troca os dará;
e se não ama, logo amará,
mesmo que não queira”.
Vem até mim também agora, e liberta-me dos
duros pesares, e tudo o que cumprir meu
coração deseja, cumpre; e tu mesma,
sê minha aliada de lutas.
Hino a Afrodite, de Safo
Tradução e Música: Leonardo Antunes
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=YxVJ-Er9Qbw&w=560&h=315]
Bibliografia
RAGUSA, G. Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Ed. Unicamp, 2005, pp.263-264
_____. Safo de Lesbos: Hino a Afrodite e outros poemas. São Paulo: Hedra, 2011, pp.75-76
TORRANO, J.A.A. Safo de Lesbos: Três poemas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2009, pp.20-21