Afrodite, segundo W. Burkert
Walter Burkert é, sem dúvida alguma, um dos maiores nomes dos estudos da religião grega antiga. Seu livro Greek Religion é uma das maiores referências e ponto de partida para qualquer um que tenha interesse no assunto, seja pesquisador, seja devoto. Dele, apresento hoje a minha tradução da seção que integra um capítulo acerca dos doze deuses olimpianos e que traça um panorama da figura de Afrodite.
Partindo das origens próximo-orientais da deusa, Burkert mostra como a sua figura se desenvolveu em meio aos gregos por meio da poesia e da iconografia, até alcançar Roma, inclusive.
Afrodite
Tradução: Jota Oliveira
Revisão: Mikka Capella
A esfera de ação de Afrodite é imediata e sensivelmente notável: a prazerosa consumação sexual. Aphrodisia, aphrodisiazein na forma verbal, denota de modo bastante simples o ato de amar, e o nome da deusa já é utilizado nesse mesmo sentido na Odisseia. O substantivo abstrato antigo para o desejo sexual, eros, que é masculino em termos gramaticais, se torna o deus Eros, o filho de Afrodite; Desejo, Himeros, frequentemente o acompanha; ambos são representados como jovens alados e, posteriormente, como infantes. Quão ímpia quer que seja vista a apoteose da sexualidade à luz da tradição cristã, ainda assim a sensibilidade moderna é capaz de apreciar como, na vivência do amor, o amado e de fato todo o mundo se mostra transfigurado e prazerosamente intensificado, fazendo com que todo o resto pareça insignificante: um tremendo poder se revela, uma grande divindade.
Os gregos não foram os primeiros a nomear uma deusa como essa e a venerá-la com um culto. Por trás da figura de Afrodite, há claramente a presença da antiga deusa semita do amor, Ishtar-Astarte, tanto divina esposa do rei, quanto rainha do céu e ainda hetaira. Essa origem semita, ou mais precisamente fenícia, já é atestada por Heródoto. Contudo, a evidência decisiva provém das correspondências do culto e da iconografia que vão além da mera sexualidade: essa divindade é andrógina. Há uma Ishtar barbada e um Ashtar masculino junto a Astarte, assim como há uma Afrodite barbada e um Afrodito masculino junto a Afrodite; Astarte é chamada de Rainha do Céu, da mesma forma que Afrodite é chamada de Celeste, Urânia; Astarte é cultuada com altares incensados e sacrifícios de pombas, assim como Afrodite e apenas Afrodite. Ishtar é, ainda, uma deusa guerreira, e Afrodite, mais uma vez, pode portar armas e conceder vitória. Além disso, se há prostituição no culto a Afrodite, então a característica mais notória do culto a Ishtar-Astarte foi assumida. A relação com jardins e com o mar também se apresenta em ambos os casos. No processo de transmissão do Oriente para o Ocidente, uma parte dela provavelmente foi desempenhada pela representação frontal da deusa nua, tal como inicialmente encontrada em pequenos objetos, em peças ornamentais e pingentes dourados; talvez seja essa a razão por que Afrodite é chamada de Áurea. Nos textos micênicos, não há vestígio algum de Afrodite; as famosas figuras de folhas-douradas do terceiro túmulo de poço não apresentam paralelos.
Como ponto intermediário, a tradição menciona Chipre e, mais especificamente, Pafos. Pafos é o lar de Afrodite já na Odisseia, e Cípria, da Ilíada em diante, é o nome poético mais comum para a deusa. Contudo, o quadro se complica devido aos novos resultados arqueológicos relacionados ao antigo e amplamente renomado templo de Afrodite em Pafos: ele é uma construção monumental datada do século XII a.E.C., o período no qual os aqueus micênicos ocuparam o local; a tradição micênica também é evidente na fachada tripla do templo, que é ornada com chifres cultuais, como se pode ver em moedas tardias. O movimento de colonização fenícia, proveniente de Tiro, chegou a Chipre apenas no século IX a.E.C.; o templo micênico de Cítio foi substituído por um santuário de Astarte por volta de 800 a.E.C. Ainda assim, a construção de um templo tão monumental é, por si só, tão menos micênica quanto Afrodite. O segundo santuário mais famoso de Afrodite no Chipre situa-se em Amathus, local onde uma inscrição e o idioma Eteo-Cipriota sobreviveram através da encruzilhada do período helenístico. Contudo, é possível que Afrodite também não seja simplesmente nativa de Chipre; estatuetas da deusa nua, datadas da Idade do Bronze cipriota, são dotadas de faces de ave cuja repugnância é assustadora. O Chipre sempre foi exposto às múltiplas influências do Oriente Próximo, mas mal pode-se definir quais, até que as inscrições cipriotas sejam decifradas. Notável é uma estatueta da deusa nua que situa-se sobre uma barra de cobre, algo equivalente ao Deus da Barra de Cobre de Enkomi: a conexão entre o templo e as oficinas de ferraria também eram impressionantes no santuário Cítio do período Micênico Tardio. Nesse ponto, a associação de Afrodite e Hefesto parece ganhar um significado inesperado. As origens de Afrodite, contudo, continuam tão obscuras quanto seu nome. A possibilidade de uma reestruturação secundária sob a influência fenícia deve sempre ser levada em conta; um segundo santuário arcaico de Afrodite em Pafos apresenta numerosas características fenícias nos monumentos votivos.
Áurea Afrodite, a amável deusa do amor, é amplamente familiar à poesia épica. A narrativa sobre como Afrodite venceu Atena e Hera no Julgamento de Páris e sobre como isso resultou no rapto de Helena e no estopim da Guerra de Troia é sem dúvida um tema lendário antigo. Essa história ressoa na Ilíada quando o poeta descreve o modo como Afrodite arrebata Páris de sua derrota sob as mãos de Menelau para o leito nupcial em Troia e conduz Helena até ele. Helena reconhece a deusa por seu pescoço delicadamente belo, por seus seios encantadores e pelos olhos reluzentes; a resistência de Helena ao potente desejo da deusa é logo vencida: Afrodite também pode ser uma deusa terrível. A intervenção de Afrodite na batalha é menos bem-sucedida quando ela tenta proteger seu filho Enéas de Diomedes: o herói a fere na mão e, à medida que o sangue divino escorre, ele caçoa, gritando que ela, mesmo sendo uma tola mulher frágil, deveria se manter longe da guerra; Zeus concorda com essa opinião, mas se expressa em termos mais amigáveis. É claro que ele mesmo acaba por, posteriormente, sucumbir à magia do cinturão bordado de Afrodite: “nele está o amor, o desejo, o discurso amável e a sedução”. Na canção que Demódoco canta aos feácios, a grande sedutora acaba virando vítima de seus próprios enganos: Afrodite, que é casada com Hefesto, mantém um caso secreto com o veloz Ares, mas Hefesto engenhosamente arma uma rede e apanha os dois em flagrante, enquanto todos os deuses reúnem-se ao redor da cena para rir sua risada homérica frente a essa preciosa visão.
Afrodite é pintada com cores mais magníficas no hino antigo que nos conta como ela saiu em busca do pastor Anquises no Monte Ida para se tornar a mãe de Enéas. Nele, Afrodite assume características da deusa frígia Cibele, a Mãe da Montanha, uma forma da Grande Mãe Anatólia que também é equiparada a Afrodite em outros lugares. Ela segue pelos declives arborizados do Ida, seguida por lobos lisonjeiros, leões de olhos brilhantes, ursos e panteras velozes; a deusa se deleita com seu cortejo e lança o desejo de amor no âmago dos animais: de dois em dois, eles acasalam na penumbra de suas tocas. Essa Afrodite é uma Senhora dos Animais, uma Senhora das terríveis feras predadoras, que sob sua influência esquecem de sua natureza e obedecem apenas à suprema lei da união sexual.
Mais perturbadoras e excepcionais são as profundezas sondadas pelo mito de nascimento relatado por Hesíodo. Urano, o céu, marido de Gaia, se recusava a permitir que seus filhos viessem à luz; então, uma vez que Urano jaz enlaçado a Gaia, o seu filho Cronos decepa os genitais de seu pai com uma foice e os atira para trás direto ao mar. À medida que o mar os carrega, uma espuma branca se reúne a seu redor e nela surge uma moça; ela é carregada sobre as ondas até Citera e de lá para o Chipre, onde ela caminha rumo à praia: uma maravilhosa e bela deusa, Afrodite, a nascida da espuma. Enquanto na poesia épica a fórmula “filha de Zeus” é vinculada a Afrodite, e Dione é mencionada como sua mãe; nesse relato, ela é mais velha que todos os deuses olimpianos: no primeiro momento de distinção cósmica, isto é, na separação entre o Céu e a Terra, o poder da união também emerge. A partir de então, Afrodite é tomada pela tradição de especulação cosmogônica que continuou a ser ricamente explorada desde Orfeu até Parmênides e Empédocles: a geração e as relações amorosas são aquilo que leva o mundo adiante.
Embora seja ignorado pela épica heróica, o mito do nascimento não é uma extravagância marginal da sofisticação poética. O epíteto homérico philommeides de Afrodite, a que ama sorrisos, é em sua própria etimologia uma reformulação do philommedes hesiódico, “aquela a quem pertencem os genitais masculinos”. Uma curiosa estatueta de terracota proveniente do século VII a.E.C. apresenta uma Afrodite barbada emergindo de um saco escrotal. A castração e o arremesso ao mar são presumivelmente relacionados a ritos sacrificiais; a cabra pertence a Afrodite. É claro que a figura que emerge do mar deixou isso tudo para trás. O nascimento do mar era um assunto favorito na arte grega e sua representação mais bela é do Trono Ludovisi, do período Tardo-Arcaico, que é possivelmente proveniente do templo de Afrodite na Lócrida.
O culto a Afrodite encontra sua mais pessoal e completa expressão nos poemas de Safo. O círculo de moças que aguardam pelo casamento é banhado pela aura da deusa, com guirlandas de flores, gorros caros, doces fragrâncias e divãs macios. Afrodite é convocada ao festival, para que desça ao seu bosque sagrado onde um sono mágico se espalha pelas folhas trêmulas e verta néctar misturado a prazeres festivos, como o vinho. A prece de Safo pelo retorno de seu irmão e pela reconciliação dos dois também é direcionada a Afrodite. O poema que foi situado no início da coleção de poemas de Safo descreve como Afrodite do trono de brilhantes cores desce do dourado lar de seu pai para terra sobre uma carruagem conduzida por aves: ela ouve a súplica de sua devota e mexerá com o coração do amado para que o amor seja recíproco; apenas o amor previne que a vida seja tomada por preocupações e fadigas.
A aceitação despreocupada da sexualidade não é, contudo, algo evidente mesmo na Grécia. No século IV a.E.C., encontramos Afrodite dividida em dois aspectos: o amor celeste, superior, Afrodite Urânia; e o amor de todo mundo, Afrodite Pandemos, que é responsável pela vida sexual inferior, especialmente pela prostituição. Ambos nomes de Afrodite são antigos e epítetos cultuais amplamente difundidos, mas o sentido original era bastante diferente. A Celestial é a Deusa do Céu fenícia, e Pandemos é literalmente aquela que acolhe todos em vínculo comunal e promove o sentimento de companheirismo necessário para a existência de qualquer sociedade. Também aqui subjaz a tradição oriental, com o poder abrangente de Ishtar, que é sobretudo um poder político. A Grande Deusa da Ásia Menor é especialmente evidente na Senhora da cidade de Afrodite na Cária. Em muito lugares, corpos magistrados faziam oferendas votivas comunais a Afrodite, tanto como sua guardiã quanto como contraste a suas obrigações oficiais.
Na iconografia, a imagem oriental nua foi suplantada, logo na primeira metade do século VII a.E.C., pela representação comum da deusa, com longos e suntuosos vestidos e com a coroa suprema da deusa, o polos. Belas vestes são a especialidade de Afrodite, mais notavelmente os colares e eventualmente os vestidos brilhantemente coloridos visavam criar um efeito oriental. Foi só em torno do ano de 340 a.E.C. que a estátua de Afrodite nua, aparentemente se preparando para um banho, foi produzida por Praxiteles para o santuário de Cnidos; por séculos essa imagem permaneceu como a mais famosa representação da deusa do amor, a personificação de todos os encantos femininos. A estátua era exibida em um ambiente circular, a fim de que pudesse ser admirada por todos os lados; fontes gregas sugerem que isso incitava mais voyeurismo do que piedade. Na arte Helenística, seguiram-se famosas Afrodites, nuas e semi-nuas, calipígias (de belas nádegas) e acanhadas. Elas se multiplicaram em cópias do período Imperial e hoje são peças de prestígio nos museus, mas elas têm pouco a acrescentar à história da religião. O apelo à tradição de Enéas em Roma, promovido sobretudo por Júlio Cesar, deu impulso ao culto de Venus Genetrix, mas disso resultou que o culto era mais a Mãe Frígia do que a Afrodite Grega.
Referência:
BURKERT, Walter. Greek Religion. Trad. John Raffan. Massachusetts: Harvard University Press, 1985. pp. 152-156